A arte em Parintins mostra um Brasil que pode mudar na força da cultura popular
Talentoso desde a raiz de sua origem amazônida, o parintinense parece trazer no DNA uma assinatura única de criatividade e resistência
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PARINTINS - A arte tem o poder de transformar vidas. A arte pode mudar rotas e fazer revoluções completas. O Festival de Parintins, além de ser um produto cultural e turístico do Amazonas, também é um produtor de transformação social na vida de mulheres; pessoas pardas; pretas; descendentes de indígenas; pessoas LGBTQIAP+ e tantas outras invisibilizadas, que encontram nos galpões dos Bois Caprichoso e Garantido em Parintins, oportunidade para se descobrirem profissionalmente e, com isso, também gerar renda e ganhar destaque em seus campos de atuações artísticas, afinal, o canto, a dança, o artesanato e as artes plásticas estão presentes do dia-a-dia da cidade.
Um exemplo é Ericky Nakanome, descendente de japoneses, que ainda curumim enfrentou as intempéries naturais de uma criança pobre, nascida no interior do Amazonas, filho de mãe solo, que brincava nas ruas e quintais do bairro Santa Clara, que do alto de seus 10 anos, não imaginaria que se tornaria uma das referências no Festival de Parintins. Tudo mudou e se moldou ao longo do tempo, com novas perspectivas, graças ao talento nato e, claro, as oportunidades que espaços, como a Escola de Artes Irmão Miguel de Pascale, lhe ofereceram e ele abraçou.
“Iniciei na Escola de Artes Irmão Miguel de Pascale na oficina de desenho e depois também participei de outras oficinas, conheci outras linguagens artísticas, como desenho, pintura, escultura, dança, teatro e instrumentos musicais. A força desse projeto social trouxe para minha vida uma transformação gigante”, pontuou.
Na sua trajetória artística, Ericky Nakanome foi artista de indumentária no qual desenhou e costurou vestidos para a Sinhazinha da Fazenda, também interpretou o personagem Gazumbá no Auto do Boi, e hoje ocupa o mais alto posto artístico do “Boi da Estrela”, presidente do Conselho de Artes. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), ele também é professor da cadeira de Artes Visuais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
A trajetória do sonho até a realidade, recorda o artista, foi muito longa e dolorida e em vários momentos, sentiu vontade de desistir. Para ele, alguém que nasce no interior do Brasil e, mais precisamente, no Amazonas está distante de inúmeras oportunidades inúmeros espaços que dão visibilidade aos artistas.
“Ao mesmo tempo que me deparava nessa situação também me encantava com tudo aquilo que era construído dentro do meu lugar, da minha aldeia, da minha cidade, que era produção artística local, que não era apenas local era o meu universo, o meu parque de diversões”, recordou, completando que essa era sua referência de infância e da realidade.
“Até essa transformação social, o caminho desse sonho foi o Boi Caprichoso pelo desejo que eu sentia na minha infância, pelas realizações que ia construindo dentro do meu espaço. Como aluno de desenho, de pintura e escultura, conhecendo pessoas, convivendo com a história do Caprichoso, construindo as minhas referências. E quem sou nessa transformação, foi me dando certeza de quem sou como identidade, como sexualidade e como personalidade, numa construção de caráter e de todas as referências, que tenho não só de arte, mas como memória", explicou.
Ericky é um dos exemplos, de como a arte muda trajetórias, numa cidade que respira e transpira arte, nas suas mais diversas formas.
Presença feminina
Outro exemplo, não menos importante e que traz a potência da força feminina, num mundo que é majoritariamente masculino, é Rafaela Souza, a Potira, parintinense de 40 anos. A arte a levou a entrar em espaços inéditos. Foi a primeira mulher a assinar contrato como figurinista, no Festival Folclórico de Parintins. O ano não tão longe. Foi em 2022, quando fez o vestido da sinhazinha Valentina Coimbra, no Boi-Bumbá Garantido.
“Foi a minha estreia e a dela na arena”, recorda, completando que sempre houve mulheres artistas nos dois bois, como Graça Faria e Carmem Cid, que são suas inspirações, porém nunca assinaram contratos.
“Infelizmente essas artistas, nunca assinaram contratos como figurinistas. São definidas como costureiras. São grandes artistas. Quero muito que mais e mais mulheres artistas apareçam e sejam valorizadas”, disse.
Rafaela lembra que a arte sempre esteve presente na sua vida, mas começou com a dança. Ela foi dançarina do Grupo de Dança Garantido Show de 1997 a 2000. Em 2009 começou a confeccionar acessórios (tiaras e casquetes de penas), quase por acaso.
“Montei um acessório só de observar outros fazendo e quando cheguei ao ensaio recebi elogios e todos perguntaram quem tinha feito. A partir daí comecei a receber encomendas”, ressalta, confirmando que a arte em Parintins é natural.
Além da ilha
Rafaela também é um exemplo dos artistas, que Parintins exporta para trabalhar nos carnavais em vários Estados do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo.
Em 2016, foi convidada a fazer a Ala das passistas da Escola de Samba Beija-Flor, sendo a primeira mulher artista de Parintins a estar na linha de frente em uma Escola de Samba do Rio de Janeiro. Também ganhou a premiação de melhor Comissão de Frente do Carnaval de São Paulo, pela Escola Gaviões da Fiel; e foi vencedora do melhor figurino de luxo pela Escola Unidos da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Foi da experiência em Escolas de Samba do Rio de Janeiro e São Paulo, que surgiu a “Potyra Ateliê”, que expandiu e levou acessórios para todo o Brasil e chegou à Europa.
“Minha arte já foi para exposição na Europa, em Gmünd na Áustria. Após morar em São Paulo, estou de volta ao Amazonas há quatro anos, onde tenho meu ateliê em Manaus. Hoje minha arte expandiu para art décor e cenografias. Amo o que faço e é de onde vem minha renda”, comemora.
Rafaela explica que fez três períodos de Psicologia, mas se encontrou mesmo na arte. “A arte mudou completamente minha vida e para melhor. Ser uma mulher, nesse meio em que predominam artistas homens é motivo de orgulho, pois trago a representatividade feminina”, completa.
O dom artístico do parintinense
Talentoso desde a raiz de sua origem amazônida, o parintinense parece trazer no DNA uma assinatura única de criatividade e resistência. É essa característica sui generis que o faz transpor barreiras para além da invisibilidade. Foi e é no abrigo da arte, que jovens periféricos de uma região periférica do Brasil, ganham status de artistas de primeira grandeza. Não é fácil, não é simples e não é para todos, mas, é nas pequenas frestas sociais que a arte proporciona, que pretos, pobres, marginalizados, gente parda, PcD´s, LGBTQIAP+, descendentes de indígenas, indígenas, mulheres e quem mais quiser buscar uma direção profissional, possam encontrar uma chance em Parintins. A ilha de Garantido e Caprichoso é um palco da vida aberto a grandes estreias. Quem vai brilhar? Depende se a plateia vai rir ou chorar, aplaudir ou vaiar. A arte tem dessas coisas.